07/08/07

Faz-se caminho, caminhando...

Nestas histórias não tenho preocupações de ordem cronológica por isso talvez tenha de voltar atrás algumas vezes.

Nas minhas recordações estou agora de abalada da minha terra natal.

- Vamos para Lisboa, dizia o meu pai, mas é para estudares e trabalhares "numa profissão a sério" que isso de ser actor é muito bonito, é muito bonito, mas não te garante um emprego para "toda a vida".

(Como as coisas mudam, Santo Deus. Actualmente já não existem empregos para toda a vida, nem mesmo nas "profissões sérias".)

E lá fomos para a grande cidade, a minha mãe, o meu pai e eu.

Como já tinha passado
o prazo das matriculas
aceitaram-me
como "assistente"
na Escola Eugénio dos Santos
em Alvalade.
No ano lectivo seguinte
matriculei-me no curso nocturno
da Escola Industrial
Machado de Castro em Campo de Ourique, onde - como soube mais tarde - Laura Alves também estudara.


Vais ser serralheiro mecânico, que é uma profissão de futuro!
- determinou o meu pai.

Fui então como aprendiz de serralheiro para uma oficina do meu tio António Teixeira no Bairro S. Miguel e meses depois com o mesmo estatuto para a Mocar, representante da Alfa Romeo e da Peugeot. A certa altura consegui negociar com o meu pai:

- Prometo manter as boas notas e continuar na "profissão séria" se nos meus tempos livres me deixarem fazer teatro!

- Mas que teimosia a deste rapaz. Para o que lhe havia de dar.

E depois de muito ponderar:

- Pronto está bem, faz lá o que quizeres nos tempos livres, desde que não falhes na Escola, nem faltes no trabalho.

Prometi e cumpri, apesar de algumas directas por causa do teatro e da rádio, tendo mesmo conseguido na Machado de Castro figurar no "Quadro de Honra" como resultado de muita aplicação, para que não houvesse problemas lá em casa e pudesse seguir os meus sonhos.
Na Escola estabeleci amizade, com Santos Teixeira, meu colega de turma, chegando à conclusão que tínhamos sonhos artisticos idênticos.

Convidou-me então a conhecer uma Companhia de Teatro Amador, onde já estava integrado, que ia levar à cena no Cine-Teatro de Alverca a Revista
"Tá Bem... Dêxa".


- Que pena, ser uma Revista. Gosto muito, como espectador, mas faltam-me aptidões para esse género, porque não tenho qualquer jeito para cantar, nem para dançar.

- Está bem, mas se quiseres, vais comigo e depois logo se vê.

Lá fui, embora consciente dos meus handicaps.

- Então queres ser actor?! É que como trabalhador-estudante não vai ser fácil. Como vais ter menos ensaios precisas de aproveitar todos os bocadinhos para estudares os papéis. Quanto ao canto e à dança não te preocupes, porque para isso temos cá gente com valor.

E tinham, como o Ilídio de Azevedo, que podia ter sido um grande artista de variedades, mas que quedou numa "profissão séria" governando a vida como empregado de escritório.

- Então qual é o teu nome artistico?

- Não tenho, chamo-me Evaristo António Gonçalves Nunes Forte (Evaristo para a família e Forte para os meus amigos)

- Evaristo... Evaristo não dá, faz lembrar aquela cena do Vasco Santana com o António Silva: "Ó Evaristo tens cá disto".

- Pois é... eu sei.

- Olha, como agora estão na moda os apelidos (aqui no elenco temos vários e na televisão, por exemplo, há o Fialho Gouveia e o Gomes Ferreira) porque é que não ficas "Nunes Forte"?!


NUNES FORTE ...
Ao principio estranhei, mas depois entranhou-se.

Pronto, estava numa companhia de teatro, amadora é certo, e até já tinha nome artistico que acabou por me assentar que nem uma luva, porque de facto me sinto "plural (Nunes) e singular(Forte)", embora às vezes me chamem Nuno Forte ou Nunes Fortes.

Tive excelente trabalho na Revista "Tá Bem... Dêxa".

Do 1º acto recordo "O Pintor e a Bailarina", com a pequena Maria Augusta, sobrinha de outro colaborador, o António Cairú, que mais tarde participou em programas da RTP e que emigraria para a Inglaterra onde editou livros de Poesia. O número mostrava um artista em crise que recuperava a inspiração depois de uma bailarina que lhe ter aparecido em sonhos. Correu bem e o público gostou.
Entre outros quadros - alguns de comédia, como o "Trio de Falidos", "O Cupido" e "O Benfiquista" - foi-me distribuida uma excelente rábula na 2ª parte intitulada "O Empresário", inspirada na peça "A Anedota" de Marcelino Mesquita, com um candidato a actor - inicialmente recusado pelo empresário - com episódios da "sua vida" vai divertindo e comovendo o empresário.

A certa altura o candidato revelava que fora tudo inventado, que apenas estivera "representar" tendo assim convencido o empresário com persistência e convicção que merecia um lugar no Teatro.

Fiquei com "pele de galinha" perante a entusisástica e para mim surpreendente reacção do público.


Anos mais tarde - como que passando da ficção à realidade - pedi a António Couto Viana para utilizar um excerto da "Anedota de Marcelino Mesquita (onde um actor pede trabalho ao empresário) como teste para "concorrer" ao Gerifalto no Teatro da Trindade. Couto Viana aceitou, mas sempre foi dizendo que o elenco estava completo.

No final do teste fui contratado.

Voltando à "Tá bem... dêxa" não tive problemas quanto ao canto e à dança apenas porque entrava nos finais de acto onde todos faziamos coro com o Ilídio. Acho que com o "barulho das luzes" não fiquei chamuscado.


O sucesso do espectáculo fez-me esquecer os cansativos ensaios em Alverca para onde ia de comboio todos os fins de semana, após o almoço de sábado, regressando na madrugada de 2ª feira, só com algumas horas dormidas numa cadeira da plateia, enquanto aguardava a minha vez de ensaiar.

O espectáculo era cenograficamente luxuoso. Tinha cenários de Hernâni e Rui Martins, alguns utilizados em "Fogo no Pandeiro" e outros em "Há Festa no Coliseu".

Havia também temas musicais de êxito de Raul Portela a emoldurar os textos originais de Ramiro Correia e Silva Marques, que também assinava a produção com Fernando Amaral.

A estreia foi a 5 de Maio de 1960 (já lá vão mais de 47 anos!) referida pela Vida Ribatejana: "(...) a sala encheu-se de lés-a-lés. O espectáculo satisfez e houve números que foram entusiasticamente ovacionados (...) e terminou em apoteose com a apresentação, um a um, de todos os componentes que foram recebidos com muitas palmas" .

Entre os espectadores estiveram a minha mãe e os meus tios António, Vasco e Augusta Nogueira que ficaram tão surpreendidos comigo que me ofereceram um anel de ouro, com uma pedra preta, para que nunca esquecesse aquele momento em que começava a concretizar os meus sonhos.

Depois de Alverca ainda apresentámos a revista "Tá Bem.. Dêxa", com cenários adaptados a palcos mais pequenos, no Clube Desportivo da Charneca do Lumiar e no Salão Fanqueiro em Loures.


À Charneca e a Loures ainda voltei com a mesma Companhia num papel principal da peça policial "Quem Matou ?" de Silva Marques.

No final do espectáculo no Fanqueiro em Loures, distraimo-nos com os cumprimentos e os abraços de parabéns e... perdemos a última camioneta.
- Então e agora?
- Agora, temos de ir a pé para Lisboa...
- A pé?! É longe e sempre a subir.
- Olhem, é melhor subir que descer. E isto é só o principio. Então o que é querem?! Toca a andar, porque amanhã é dia de trabalho!


E lá fomos de Loures
até Lisboa,
sempre a subir,
com "as malas às costas".
Quando chegámos ao cimo
da Calçada de Carriche
também já não havia
transportes públicos
e, para nós,
os táxis eram
demasiado caros.



Apesar do longo percurso, com a galhofa própria da idade, nem sentimos o cansaço. Falámos de tudo e de mais alguma coisa, sobretudo das dificuldades e das "facilidades" que algumas e alguns tinham para ascenderem ao estrelato, com "madrinhas e padrinhos" certos. Mas ali assumimos um compromisso: Se conseguissemos alguma coisa haveria de ser apenas com trabalho. Mantive-me fiel a esse compromisso.

Pelo caminho foram ficando, um a um, os meus companheiros, tanto naquele percurso, como mais tarde na vida artística.

No Arco do Cego já ia sozinho, mas via claramente que o caminho não ia ser fácil.

Finalmente, cheguei a casa na Rua da Penha de França, mesmo junto a Sapadores.

A cidade estava a acordar e só tive tempo de tomar um duche, pegar na lancheira com o almoço que a minha mãe preparara de véspera, meter num saco o fato macaco de operário, pegar nos livros e sair a correr para mais uma semana de trabalho e de escola.

Havia ainda tanta estrada para percorrer, teria forças para isso?!

Mas daquela longa viagem a pé, sempre a subir, do Fanqueiro a Lisboa ficara a lição de que nunca se deve desanimar perante as dificuldades.

FAZ-SE CAMINHO, CAMINHANDO!