31/07/07

não basta querer

- Músico ou aviador!

Era assim que respondia à clássica pergunta "O que queres ser, quando fores grande?".

Não fui músico nem aviador. Músicos conhecia os das Filarmónicas que acompanhavam as Procissões de Nª Senhora de Monte Carmo e aviões apenas de gravuras, como o que estava pintado na "barraca do fotógrafo" onde fui "pilotar" com a minha mãe Maria de Jesus. Mas o meu querer mudou com a leitura.
Desde que me conheço, que o que mais gosto de fazer é folhear livros e jornais. Mesmo antes de saber ler passava o tempo fingindo que lia, dando o tom de leitura às histórias impressas que a pedido o meu avô António Nunes Forte me havia lido vezes sem conta.
Aos quatro, cinco anos era tal a convicção com que o fazia, que parecia mesmo estar a ler, provocando a admiração entre os clientes da barbearia do meu tio Joaquim Forte, na Venda do Pinheiro, onde passei alguns dias da minha infância vestido com uma bata branca, igualzinha à que ele usou até ao seu último dia de trabalho.

Por volta dos seis anos, aprendi a ler pela Cartilha de João de Deus ensinado por D. Filipa Baião do Nascimento, que durante algum tempo viveu com o filho António na Rua do Alto da Neve, bem perto da minha casa.
O Antoninho, como tantos outros meninos daquela idade, estava a "ares" a conselho médico no micro clima particularmente saudável da Venda do Pinheiro, então uma terra de veraneantes, que fazendo jus ao nome, era uma pacata aldeia da freguesia do Milharado rodeada de pinhais.

Com a familia Baião do Nascimento - onde além do António, praticamente da minha idade, havia também a Terezinha e o Zé - mantive estreita ligação ao longo dos anos, mesmo em Lisboa onde os visitava na casa da Praça do Chile, até que os diferentes ritmos da vida nos foram afastando do convivio, mas não do meu coração.

A partir dessa altura, qual jogo das escondidas, qual jogo da bola, qual quê, o que queria mesmo, era ler, ler de verdade.

Lia tudo das histórias clássicas e romances às revistas como "O Mundo de Aventuras" e "O Cavaleiro Andante" compradas pelo meu avô na Alfaiataria do Senhor Ferreira que também tinha uma secção de papelaria e livraria.












De Lisboa vinha o "Titã" trazido pelo meu pai ao fim de semana e que aguardava com expectativa.
Praticamente a única excepção às leituras "eram as animadas festas do tóino da Amélia" que no olival em frente da sua casa armava um "arraial" com canas, decorado a preceito com "festões" que mais não eram que pedaços de papel de jornal pendurados em cordéis. Depois montava os "cavalinhos" e a "pista dos carrinhos" com pedras e troncos de árvores em circulo a "fazerem de conta" que eram o carroucel e num rectangulo para "circularem" os carrinhos de choque. "É só mais uma voltinha... Não subam, nem desçam com o carroucel em movimento". É entrar, é entrar!" O Eurico, o Zézinho e eu éramos os principais clientes dessas festas. Pagávamos com pinhões que apanhávamos ali perto e depois sentados nas pedras e troncos "rodávamos"... ao sabor da imaginação. Para criar ainda mais ambiente o António ia atirando ao ar pequenas canas, os foguetes, enquanto gritava: "vcheeeeee.... pum, pum, pum"! Era mesmo uma festa, podem crer!

Fora disso e sempre que podia ia para a "Quinta dos Estrangeiros" ao fundo da qual corria um pequeno riacho (com dois palmos de água) onde com o Victor Caetano e o Xico Casal, entre outros, cheguei a tomar banho em pelota.
Nessa quinta, havia um lugar de magia para mim: o forte da quinta. Imaginava que havia lá uma gruta como a do Ali Bábá que com a palavra "Abre-te Sésamo" poderia deslocar a grande pedra de entrada totalmente invisivel aos olhos dos crescidos. Mantive a minha gruta secreta, e a verdade é que até hoje ninguém encontrou a tal entrada, nem quando esventraram parte do monte para o acesso da A8 à Venda do Pinheiro ou quando lá colocaram antenas de telemóveis mesmo em cima do meu castelo, que embora rodeado por um fosso de defesa foi desaparecendo ao longo dos tempos. Na verdade não existia qualquer um castelo, mas o fosso era verdadeiro e pertencia ao "forte" escavado o alto daquele monte que fez parte da defesa das Linhas de Torres durante a 3ª Invasão francesa como muitos anos mais tarde vim a saber.
Era ali que me isolava lendo em voz alta para melhor entender os textos.
Quando entrei para a Escola oficial, D. Júlia Barros, que já fora professora do meu pai Alfredo e dos meus tios Joaquim e Sabino, ficou espantada com aquele rapazinho que lia correctamente e "interpretava" os diálogos fazendo vozes diferentes.
- Ó rapaz, a leres assim, ainda vais parar ao teatro. Talvez qualquer dia façamos a peça "A Rainha Santa " onde há um bom papel para ti.
E até chegou a contar de como seria representado um dos milagres de Santa Isabel:
- Na cena em que a Rainha cura os mendigos as chagas serão desenhadas em papel e coladas à pele para que ao leve toque da mão de D. Isabel,desapareçam, como por milagre.
Nunca soube qual o papel que me estaria destinado na tal peça escolar, porque nunca se fez, mas a ideia de ir teatro é que não mais me abandonou - até porque entretanto assisti a dois factos que me marcaram bastante: a filmagem de umas cenas do filme "Dois Dias no Paraíso" e a estreia da Televisão em Portugal, histórias que ficam para outra altura. Ainda tentei "fazer teatro" com os meus amigos de infância, António, Eurico e Fausto José, mas não estavam para aí virados.

Por volta dos 13 anos estabeleci amizade com uns vizinhos espectaculares, um casal de irmãos, com um apelido invulgar: Veneno. E os Veneno e o Forte (que mistura, Santo Deus!) decidiriam "montar um espectáculo teatral " com um texto do livro FÉRIAS GRANDES de Odette de Saint-Maurice (de quem viria a ser grande amigo e colaborador) intitulado "UMA MALDADE" com 3 personagens, a Leonor, o avô Pedro e o Pobrezinho - que no romance juvenil era" interpretado pelo Pedro Macedo" - e que reservei para mim. O Pedro Macedo, figura de ficção, é um dos "muitos amigos" que fui fazendo entre as personagens que povoaram o meu imaginário e que saltavam dos livros que me emprestavam ou dos que o avô António me comprava e que alimentavam a minha fome de leitura. Os meus preferidos eram os livros de Odette de Saint-Maurice sobre a saga da Família Macedo, porque as personagens "tinham mesmo vida e cresciam comigo" (ao contrário de protagonistas de outras aventuras para jovens onde os anos passavam e eles ficavam sempre com a mesma idade).
Anos mais tarde soube que a escritora se inspirava na vida real para desenhar o perfil das suas personagens, o caso mais conhecido é o da sua empregada Rosa que ainda hoje trabalha em casa do viúvo da escritora. O Domingos, por exemplo, um rapaz que aparece em A QUINTA DE S. BOAVENTURA, tem alguma coisa de mim ou pelo menos reflecte o que a autora via em certos aspectos da minha maneira de ser, como me contou mais tarde a inesquecível grande amiga Odette de Saint-Maurice de que noutra altura hei-de de falar mais em pormenor. As personagens eram tão reais que muitos dos que "as conheceram" ainda vivem com elas. O Pedro Macedo, por exemplo, "um rapaz às direitas", tem hoje a minha idade, embora desde que Odette de Saint-Maurice nos deixou nada mais tenha sabido dele. A última coisa que li sobre o Pedro, já depois do 25 de Abril, era que ia para África, como médico, em missão humanitária.
Mas voltemos à tal peça integrada no livro FÉRIAS GRANDES com que "me estreei" e que foi levada a cena numa noite de Verão perante a Família e os vizinhos para dizer que foi um sucesso, claro. O público era da casa.
Dessa pueril experiência ficou um "veneno forte" no sangue: o Teatro.

A partir daí este saloito, nado e criado numa aldeia de roupa branca, muito perto da casa onde nasceu a popular Beatriz Costa, tinha uma resposta firme à pergunta "O que queres ser quando fores grande?": - ACTOR.

Só que, não basta querer.